São Francisco: nosso pai

Espiritualidade franciscana
Santa Clara e São Francisco. Pintura da Basílica de São Francisco (Assis/ Itália)

    A ficção nem sempre imita a realidade, e isso se aplica muito bem à vida de Santa Clara e São Farancisco de Assis, em que a maioria dos escritos literários (que se tornaram produções cinematográficas), mais do que autenticidade histórica buscam salientar um clima de provável romance entre os dois, sugerindo um enamoramento frustrado que resultou no fechamento da jovem no mosteiro de São Damião.

   O sonho de fazer-se cavaleiro é a grande ambição do alegre e festeiro Francisco de Bernardone, intitulado pelos amigos de "rei da juventude", mas o inesperado acontece. Em 1205 Francisco alista-se para a guerra na Apúlia, mas não vai além de Espoleto; tocado pela graça, ele desiste da batalha e retorna a Assis. Embora procure manter o estilo de antes, está imerso em uma grande crise existencial.

Vocação de São Francisco
Basilica de São Francisco (Assis / Itália)

    No ano seguinte, ainda tido por muitos como covarde e insano, muda seu comportamento extravagante. Na procura de resposta tem longos momentos de oração nas grutas, fora dos muros de Assis. O nome da família começa a ser 'desonrado' em razão de sua conduta, pois também dedica-se ao cuidado dos leprosos, sendo solidário com todos os necessitados que encontra em seu caminho.
  
    Com desapego, faz generosas doações com os tecidos da loja do pai Pedro Bernardone, este, encolerizado em razão dos prejuízos, querendo a devolução do dinheiro e também salvaguardar o nome da família, faz queixa do filho, antes muito estimado, aos cônsules (autoridade jurídica na época), mas Francisco se recusa a ir, pois já vive como um consagrado.

   Então o pai recorre ao Bispo (autoridade religiosa), que aconselha Francisco a apresentar-se e resolver a questão. Já certo do que quer para si, diante do pai, Francisco despe-se das roupas, devolve-as juntamente com o dinheiro que tinha consigo, e renuncia tanto a filiação quanto aos bens materiais; declara-se unicamente filho do "Pai Nosso"parte para Gúbio.

  Vestido, inicialmente, como um eremita, pobre e livre, afastado de tudo que antes lhe dava grande satisfação: os amigos, as festas e as serenatas, alguns meses depois Francisco retorna a Assis. Nas suas "peregrinações" pelos lugares ermos, fora dos muros da cidade, visita a antiga capela de São Damião, já semidestruída, onde ouvirá do Crucificado: "Francisco, vai e reconstrói a minha igreja que está em ruínas".

Oração de São Francisco diante do Crucifixo de São Damião

      Cheio de contentamento começa a obra de restauração desse pequeno templo (1207). Entende, num primeiro momento, que Nosso Senhor lhe quer como um restaurador da igreja material, feita de pedras e cal, e dá início à vivência da sua vocação sendo um habilidoso pedreiro, enchendo de calos suas mãos antes delicadas, habituadas a lidar com tecidos finos. Também reconstruirá outras igrejinhas abandonadas.

  Somente mais tarde compreenderá que a Igreja a ser reconstruída é a do Corpo Místico de Cristo, que o levará a viver o Evangelho tal como os apóstolos. Sendo desapegado de tudo, levando o nome de Jesus até os confins da Terra, numa vida de fraternidade, onde todos se vêem, e se tratam, como irmãos, filhos amados do mesmo Pai cuja unidade nos foi alcançada pelo Crucificado. 

  E esse seguimento, vivido por Francisco, baseado na minoridade fraterna e na simplicidade, despertará o interesse de muitos jovens assisenses, entre eles o primo de Clara, Rufino, o que acaba gerando a ira dos nobres e burgueses, que vêem seus promissores herdeiros abandonar o século, doando tudo aos pobres, e se fazendo míseros trabalhadores, vivendo como mendigos. 
  
    A diferença de idade (mais de dez anos), o testemunho e o aconselhamento espiritual e, também o seguimento no carisma favorece o amor filial de Clara por São Francisco; e ela o manifesta em palavras afetuosas e reverentes em todos os seus escritos, seja na Forma de Vida (Regra), no Testamento ou nas Cartas, chamando-o sempre de "nosso pai" ou "nosso bem-aventurado pai".

    Mas não menos afeto dedica-lhe Francisco pois ela foi a sua primeira seguidora, a primeira mulher a fazer parte do seu movimento medicante; conta-nos Santa Clara em seu Testamento espiritual: "Movido de piedade para conosco, assumiu o compromisso, por si e por sua Ordem, de ter sempre por nós o mesmo cuidado diligente e a mesma atenção especial que tinha para com seus Irmãos" (TsCl)

    E desde o começo, logo após sua conversão, Francisco já profetizara a respeito da Ordem de Santa Clara, que se constituiria na primeira capela que ele estava restaurando com suas próprias mãos e ali habitaria. A luz do Espírito Santo, ele profetizaria sobre esse ramo feminino de sua família religiosa, que já existia nos desígnios amorosos de Deus.

     Assim narra Santa Clara em seu Testamento: "Pois, quando o santo, logo depois de sua conversão, sem ter ainda irmãos ou companheiros, estava construindo a igreja de São Damião, em que foi visitado plenamente pela graça divina, e foi impelido a abandonar o mundo, numa grande alegria e iluminação do Espírito Santo, profetizou a nosso respeito aquilo que o Senhor veio a cumprir mais tarde.

     Pois, nessa ocasião, subindo ao muro da igreja, ele disse em voz alta e em francês para uns pobres que moravam ali perto: "Venham me ajudar na obra de São Damião, porque nele ainda haverão de morar umas senhoras cuja vida famosa e santo comportamento vão glorificar nosso Pai celestial em toda a sua santa Igreja"(TestCl).

    Mais tarde diante das dúvidas de como deveria servir ao Senhor, é a Santa Clara  que São Francisco recorre, confiante em sua vida de oração. Clara havia curado suas Irmãs de várias doenças fazendo-lhes o sinal da Cruz, mas condicionava a cura ao bem das suas almas, pois muitas vezes esse tipo de provação leva a uma maior humildade e favorece o processo de conversão. 

São Francisco próximo a entrada do mosteiro de São Damião
Escultura em bronze de São Francisco próximo a entrada de São Damião (Assis/Itália)

  Quando no inverno de 1224 São Francisco esteve hospedado em uma pequena cela (peça) junto ao mosteiro de São Damião ditou um cântico para as Irmãs. Sabia que algumas estavam bastante aflitas com as enfermidades, na época ele já se encontrava completamente cego em razão de grave doença nos olhos, contraída na sua viagem a Terra Santa; mesmo sofrendo quis consolá-las.

    Sensível à fragilidade humana, exortou-as, para que as provações terrenas não lhes diminuísse o vigor da fé: "Ouvi, pobrezinhas, pelo Senhor chamadas, que de muitas partes e províncias fostes congregadas. Vivei sempre na verdade, e perseverai na obediência até a morte. Não olheis a vida de fora, porque a do espírito é melhor. Eu vos rogo com grande amor, que tenhais discrição nas esmolas que vos dá o Senhor. 

       As que estão agravadas de enfermidades e as outras que por elas estão fatigadas umas e outras suportai-as em paz, porque vendereis caro essa fadiga. Por que cada uma será rainha no céu coroada com a Virgem Maria". São Francisco era um sábio homem, experiente quanto as provações da vida, principalmente na fragilidade do corpo, que sua vida austera lhe debilitou precocemente. 

    E o ideal frustrado de cavaleiro de um rei humano fez de Francisco o pai de uma grande família que se espalhou pelo mundo inteiro, onde deve prevalecer sempre a igualdade entre todos, a fraternidade universal, em que se vive  a pureza da liberdade do Evangelho, sem apego a bens materiais, pois tudo neste mundo é passageiro e se atribui o valor devido ao ser humano, feito imagem e semelhança de Deus.

Atualizada em 30/10/2025.

 

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