Segunda Carta de Santa Clara a Inês de Praga

Escrita possivelmente entre 1234 e 1238. Dois fatos permitem assegurar essas datas limites: Frei Elias como ministro geral da Ordem dos Frades Menores cujo segundo mandato ocorre entre 1234 e 1239, a quem Clara aconselha Inês a obedecer, e a questão envolvendo o Papa Gregório IX que pressiona a abadessa de Praga a receber propriedades com o documento Cum relicta saeculi, de 1235, o que é contrário ao ideal de pobreza clariana. Com objetividade Santa Clara instiga Santa Inês a não acolher recomendações que lhe afastem da sua Forma de Vida, mesmo que venha de pessoa "que mereça sua veneração". 



   Clara, serva inútil e indigna das pobres damas, saúda dona Inês, filha do Rei dos reis, serva do Senhor dos senhores, esposa digníssima de Jesus Cristo e por isso rainha nobilíssima, augurando que viva sempre na mais alta pobreza.

   Agradeço ao Doador da graça, do qual cremos que procedem toda dádiva boa e todo dom perfeito, pois adornou-a com tantos títulos de virtude e a  fez brilhar em sinais de tanta perfeição, para que, feita imitadora atenta do Pai perfeito, mereça ser tão perfeita que seus olhos não vejam em você nada de imperfeito.

  É essa perfeição que vai uni-la ao próprio Rei no tálamo celeste, onde se assenta glorioso sobre um trono estrelado. Desprezando o fausto de um reino da terra, dando pouco valor à proposta de um casamento imperial, você se fez seguidora da santíssima pobreza em espírito de grande humildade e do mais ardente amor, juntando-se aos passos daquele com quem mereceu unir-se em matrimônio.

   Mas eu sei que você é rica de virtudes e vou ser breve para não a sobrecarregar de palavras supérfluas, mesmo que não lhe pareça demasiado nada que lhe possa dar alguma consolação.  Mas, como uma só coisa é necessária, é só isso que eu confirmo, exortando-a por amor daquele a quem você se entregou como oferenda santa e agradável. Lembre-se da sua decisão como uma segunda Raquel.

   Não perca de vista seu ponto de partida, conserve o que você tem, faça o que está fazendo e não o deixe, mas, em rápida corrida, com passo ligeiro e pé seguro, de modo que seus passos nem recolham a poeira, confiante e alegre, avance com cuidado pelo caminho da bem-aventurança.  Não confie em ninguém, não consinta com nada que queira afastá-la desse propósito, que seja tropeço no caminho, para não cumprir seus votos ao Altíssimo na perfeição em que o Espírito do Senhor a chamou.

   Nisso, para ir com mais segurança pelo caminho dos mandamentos do Senhor, siga o conselho de nosso venerável pai, o nosso Frei Elias, ministro geral.  Prefira-o aos conselhos dos outros e tenha-o como o mais precioso dom.

   Se alguém lhe disser outra coisa, ou sugerir algo diferente, que impeça a sua perfeição ou parecer contrário ao chamado de Deus, mesmo que mereça sua veneração, não siga o seu conselho. Abrace o Cristo pobre como uma virgem pobre.

   Veja como por você ele se fez desprezível e o siga, sendo desprezível por ele neste mundo. Com o desejo de imitá-lo, mui nobre rainha, olhe, considere, contemple o seu esposo, o mais belo entre os filhos dos homens feito por sua salvação o mais vil de todos, desprezado, ferido e tão flagelado em todo o corpo, morrendo no meio das angústias próprias da cruz.

   Se você sofrer com ele, com ele vai reinar; se chorar com ele, com ele vai se alegrar; se morrer com ele na cruz da tribulação vai ter com ele mansão celeste nos esplendores dos santos. E seu nome, glorioso entre os homens, será inscrito no livro da vida.

   Assim, em vez dos bens terrenos e transitórios, você vai ter parte na glória do reino celeste eternamente, para sempre, vai ter bens eternos em vez dos perecedores, e viverá pelos séculos dos séculos.

   Adeus, Irmã querida, senhora minha pelo Senhor que é seu esposo. Em suas piedosas preces, procure lembrar-se de mim e de minhas Irmãs, que nos alegramos com os bens que o Senhor realiza em você por sua graça. Recomende-nos também, e muito, às suas Irmãs.